segunda-feira, 31 de agosto de 2015

A óptica adaptativa

Leonora Christine é uma nave espacial, cuja tripulação (de 25 homens e 25 mulheres) tem a missão de colonizar uma estrela distante. A nave é movida por propulsão Bussard, um método proposto em 1960 pelo físico americano Robert Bussard (1928-2007), pelo qual a nave coleta hidrogênio do meio interestelar e o comprime até que uma reação de fusão nuclear ocorra. Em conformidade com a teoria da relatividade, a nave não é capaz de ultrapassar a velocidade da luz e sua tripulação está sujeita ao efeito de dilatação temporal: enquanto ela gasta 5 anos a bordo, 33 anos se passam na Terra, até a nave chegar ao seu destino. Mas, ao passar por uma nebulosa, antes da metade da viagem, a nave tem seu módulo de desaceleração danificado e a tripulação não pode repará-lo, pois teria que desligar concomitantemente o escudo anti-radiação.  Esta é a trama do romance de ficção científicaTau Zero (1970) de Poul Anderson (1926-2001). O nome vem da definição pelo autor de um fator tau que se aproxima de zero quanto mais a nave se aproxima da velocidade da luz, isto é, o inverso do fator de Lorentz: , onde v é a velocidade da nave e c a velocidade da luz.

Contudo, na minha postagem do mês sobre o Ano Internacional da Luz, não vim falar de relatividade, mas de uma outra previsão considerada pelo autor desta obra ficcional: a da óptica adaptativa. Esta, por sua vez, proposta pelo astrônomo americano Horace Welcome Babcock (1912-2003), em 1953. O astrônomo estava labutando com os problemas causados pela atmosfera da Terra nas observações astronômicas. A luz pode vir dos confins do cosmos, de bilhões de anos-luz de distância, e tornar-se incrivelmente confusa nas últimas dezenas de quilômetros, ao atravessar os gases turbulentos da atmosfera da Terra. Então, ele veio com a idéia da óptica adaptativa: descobrir o quanto a atmosfera embaralha a luz para, rapidamente, mudar as formas dos elementos ópticos, como espelhos, e, com isso, desfazer os efeitos da turbulência atmosférica.

Sistema de óptica adaptativa do ESO, com laser apontando
para o centro da Via-Láctea. Fonte: Wikipedia.

Entretanto, na época de sua proposta, não havia a tecnologia necessária para se pôr a ideia de Babcok em prática. Posteriormente, durante as décadas de 1970 e 1980, em tempos de Guerra Fria, os militares americanos investiram pelo menos US$ 1 bilhão em métodos para viabilizá-la. Eles procuravam, por um lado, melhorar as imagens de satélite e, por outro, rastrear os satélites soviéticos. Finalmente, o uso comum deu-se apenas durante a década de 1990 com os avanços das tecnologias computacionais.

A técnica


Correção da frente de onda com o uso de um 
espelho deformável. Fonte: Wikipedia.

A óptica adaptativa é utilizada para melhorar o desempenho de sistemas ópticos, reduzindo efeitos de distorções nas frentes das ondas incidentes – por exemplo, causadas pelas turbulências da atmosfera. A técnica destina-se à correção de aberrações e basea-se na medição dessas distorções e na utilização de métodos para compensá-las. Um dispositivo, tal como um espelho deformável ou uma matriz de cristal líquido são empregados. Telescópios, microscópios, sistemas de imagem de retina e alguns elementos ópticos são os principais objetos a fazerem uso da óptica adaptativa. Mas, cuidado! Ela não deve ser confundida com a óptica ativa, aplicada numa escala de tempo mais longa, servindo para corrigir imperfeições causadas na geometria de espelhos primários pela exposição ao estresse mecânico, vento ou temperatura. 

Exemplo de implementação da técnica da óptica adaptativa 
com o uso de um espelho deformável. 


Espelhos deformáveis em Sistemas MicroEletroMecânicos (MEMS) são atualmente a tecnologia mais amplamente empregada. São usados para moldar as frentes de onda nas aplicações de óptica adaptativa dadas suas versatilidade e maturidade tecnológica, que permitem correções de alta resolução. A forma mais simples é a correção "tip-tilt", que corresponde a inclinações da frente de onda em duas dimensões: um espelho move-se rapidamente, fazendo pequenas rotações em torno de dois dos seus eixos, efetuando, desta forma, as correções. No caso de telescópios, uma fração significativa da aberração introduzida pela atmosfera pode ser assim removida. Em vez de ter uma matriz de segmentos que poderiam fazê-lo de forma independente, os espelhos tip-tilt são efetivamente espelhos segmentados em que apenas um deles pode inclinar-se. Devido à relativa simplicidade de tais espelhos, eles são usados, em primeiro lugar, para corrigir aberrações de baixa ordem.

Espelho adaptativo de 1,12 m de diâmetro e 2 mm de espessura
utilizado no Observatório Europeu do Sul (ESO). Crédito: ESO.

A atmosfera, apesar de ser uma fina camada de gases que envolve o nosso planeta, é um sistema relativamente complexo: sua estrutura de camadas, com diferentes perfis de temperatura, e seu fluxo energético faz com que haja diferenças de pressão que, por sua vez, geram ventos de diferentes velocidades; ventos estes que ocasionam as turbulências. Agora, quando a luz de uma estrela, ou um outro astro celeste, penetra na atmosfera, as turbulências podem distorcer e mover a imagem de várias maneiras – efeito que cresce com a abertura do telescópio – e as imagens produzidas por qualquer telescópio maior do que a poucos metros são alteradas por estas distorções. Assista ao video abaixo, feito com um telescópio Celestron NexStar 12SLT e uma webcam instalada na ocular. Nele, pode-se perceber bem o efeito da turbulência da atmosfera na captação das imagens da Lua. Aliás, como bem lembrado pelo autor do video, esta é a mesma razão pela qual vemos as estrelas – por vezes, até os planetas – piscarem.



Um sistema de óptica adaptativa tenta corrigir as distorções introduzidas pela atmosfera turbulenta. Usando um sensor de frente de onda que recebe uma parte da luz astronômica, um espelho deformável que se encontra no caminho óptico e um sistema de controle que recebe os dados do detector. O sensor de frente de onda mede as distorções que a atmosfera introduziu, numa escala de tempo de alguns milissegundos, e o computador calcula a forma ótima do espelho para corrigir as distorções obseradas. A superfície do espelho deformável é, então, remodelada em conformidade. Por exemplo, um telescópio entre 8 e 10 m (como o VLT ou Keck) pode produzir imagens corrigidas por óptica adaptativa com uma resolução angular entre 30 e 60 milissegundo de arco (ou milliarcsecondmas) em comprimentos de onda infravermelhos, enquanto a resolução sem correção é da ordem de 1 segundo de arco. Veja as figuras abaixo, obtidas sem e com o uso de óptica adaptativa.

Imagem de uma galáxia sem (à esquerda) e com
(à direita) as correções da óptica adaptativa. 
Imagem de Urano sem (à esquerda) e com 
(à direita) as correções da óptica adaptativa. 

Inicialmente, para efetuar as correções necessárias da óptica adaptativa, a forma das frentes de onda de entrada é medida como função da posição no plano de abertura telescópio. Então, divide-se a abertura circular do telescópio numa matriz de pixels de um sensor de frente de onda. Os sensores mais utilizados são o de Shack-Hartmann, feitos a partir de uma matriz de pequenas lentes (vide figura abaixo). O mapa das perturbações da frente de onda média de cada pixel é calculado e utilizado para alimentar as correções do espelho deformável. Assim, os erros introduzidos na frente de onda pela atmosfera são corrigidos. O espelho deformável corrige a luz de entrada e as imagens aparecem nítidas.

Sensor de Shack-Hartmann.

Estrelas-guia


Entretanto, para realizar a óptica adaptativa há sempre a necessidade de se tomar uma fonte de luz como referência. Por conseguinte, o sistema não pode trabalhar em qualquer região do céu, mas apenas onde há uma estrela guia com luminosidade suficiente – nos sistemas atuais, com magnitude de até 15. Isto limita severamente a aplicação da técnica nas observações astronómicas. Outra grande limitação é o pequeno campo de visão sobre o qual a correção da óptica adaptativa é boa. À medida que a distância angular a partir da estrela guia aumenta, a qualidade da imagem se degrada. Para se atingir um maior campo de visão, pode-se usar a técnica conhecida como óptica adaptativa multiconjugada, que faz uso de vários espelhos deformáveis.

Uma alternativa é o uso de um feixe de laser para gerar a fonte de luz de referência na atmosfera, a Estrela-Guia de Laser (LGS). LGSs vêm em dois tipos: estrelas-guia de Rayleigh e estrelas-guia de sódio. O LGS de Rayleigh trabalha com a propagação de um laser, normalmente em comprimentos de onda no ultravioleta próximo, para detectar a retropropagação do laser no ar em altitudes entre 15 e 25 km. O LGS de sódio faz uso da luz de um laser de 589 nm para excitar os átomos de sódio presentes na mesosfera e termosfera, que, em seguida, cintilam. Desta forma, a LGS pode ser usada como referência para a forma da frente de onda, ou seja, como uma estrela-guia natural - exceto que muito mais fracas.


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